Coberturas
Documentário Retratos de Identificação resgata memória de ex-guerrilheiros
Crea Cultural, 26/02/2015
Por Vitor Cruz
Seladas nos porões da ditadura militar, histórias da recente memória brasileira ganharam um olhar diferente, com o documentário “Retratos de Identificação”, dirigido por Anita Leandro, e exibido na noite desta quinta-feira, 26, no Crea-Cultural. Primeira obra produzida a partir dos acervos fotográficos produzidos pelas agências de repressão entre 1964 e 1985, o filme mostra a reação dos ex-guerrilheiros Antônio Roberto Espinosa, da VAR-Palmares, e Reinaldo Guarany, da Aliança Libertadora Nacional (ALN), quando se surpreendem com as fotografias tiradas pelo extinto Departamento de Ordem Política e Social (Dops) no momento em que foram presos.
Da resistência ao exílio, passando pela perseguição policial, até o cerco ao aparelho onde Antônio Espinosa foi preso, em companhia de Maria Auxiliadora Lara Barcellos, a Dôra, e Chael Charles Schreier. Dos três guerrilheiros apanhados em 21 de novembro de 1969, apenas Espinosa sobreviveria. Chael morreu menos de 24 horas depois da prisão, e Dôra cometeu suicídio, em 1976, cinco anos após o exílio político na Alemanha. O reencontro entre Espinosa e os registros feitos pela repressão naquela noite é o ponto inicial de Retratos de Identidade, que impressiona pela simplicidade com que resgata um momento obscuro do nosso passado.
Ao se deparar, pela primeira vez, com os registros feitos pelos oficias na Vila Militar, há mais de quatro décadas, Espinosa vai narrando os momentos que antecederam a prisão dele e dos outros três companheiros. Enquanto conta as histórias de resistência e prisão, imagens dos guerrilheiros aparecem na tela. Passado e presente se reencontram, na medida em que um Espinosa já grisalho revê a fotografia do jovem combatente ensanguentado e detalha os momentos de tortura sofridos por ele, Dôra e Chael.
A segunda metade do documentário é conduzida pelo depoimento de Reinaldo Guarany, militante da ALN. Os relatos de Guarany contam a trajetória de alguns presos políticos banidos para o Chile, em 1971, em troca da vida do embaixador suíço no Brasil, Giovanni Bucher. Entre os exilados, estavam Dora e o próprio Reinaldo. Das dificuldades em entender o governo de Salvador Allende até os momentos difíceis vividos por eles na Europa, o que mais impressiona nos relatos de Reinaldo é a forma como Dôra era consumida, aos poucos, pelas lembranças da tortura que a assombravam. Só a morte traria conforto à guerrilheira, relembra Reinaldo, em um depoimento chocante sobre o “adeus” que receberia da companheira. Na manhã de 11 de junho de 1976, Dora se jogaria na frente de um trem, em uma estação de metrô da Berlim Ocidental.
Fruto de quatro anos de pesquisa nos acervos do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) da Guanabara, do Serviço Nacional de Informações (SNI) e do Superior Tribunal Militar, Retratos de identificação foi realizado dentro do projeto Marcas da Memória da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (CA/MJ). A diretora do documentário, Anita Leandro, que leciona cinema na Universidade Federal do Rio de Janeiro, explica que, até ser concluído, o processo de pesquisa encontrou uma série de dificuldades. Uma delas foi a preservação dos documentos do Dops. “Os arquivos chegaram deteriorados, estragados, em sacos, tudo misturado. Eu tive que fazer uma recuperação da própria narrativa da história que está dispersa nos arquivos”, disse.
O minucioso trabalho de pesquisa de Anita ainda renderia algumas surpresas para ela. Perto da conclusão do filme, ela encontrou novos arquivos no Tribunal Superior Militar, em Brasília. No dia da prisão, Dôra foi seguida por um policial que registrou todos os movimentos dela entre o bairro de Lins de Vasconcelos até a cidade de Niterói. “Há um documento que diz assim: ‘às oito horas da noite, alvo seguiu para local ignorado’. Ou, seja, ela foi pra casa e a equipe de prisão cercou o aparelho. Quando eles chegaram na delegacia, às dez da noite, todas as fotos estavam reveladas e a polícia jogou tudo na mesa. ‘Nós já sabemos tudo sobre vocês. Podem falar agora’”, explicou Anita.
A carga emocional contida nos arquivos também foi outro fator importante na obra. Para dar sequência à produção do filme, era necessário que os parentes das personagens relatadas na história autorizassem a divulgação das imagens. “É sempre tão difícil remoer o passado. Chegar para os familiares e dizer: eu quero falar da sua tragédia. Eu quero falar daquilo que ainda está escondido”. O retorno acabou sendo positivo tanto para Anita quanto para as famílias. A verdadeira história de Chael, por exemplo, era ignorada até a exibição do documentário. “Só souberam da militância dele quando assistiram ao filme e descobriam que ele pegou em armas e resistiu à prisão”.
O pioneirismo de Anita contribui para que novas perguntas sejam feitas, respostas apareçam e, um período tão sombrio não caia no esquecimento. “Alguém tinha que fazer esse filme. Por um acaso fui eu”. Por se tratar do primeiro filme produzido a partir ditadura militar, Retratos de Identificação tem papel importante na reconstrução da memória nacional. Com a sanção da lei de acesso à informação, em 2011, e outras iniciativas que reafirmam a busca pela verdade, o resgate da breve história dos anos de chumbo ganha novo fôlego. Para Anita, “o cinema tem essa função, de popularizar a informação sobre um assunto. Já é tempo para as pessoas se perguntaram o que aconteceu realmente. Ou esquecer totalmente. Eu tenho vários estudantes de 20 anos que não sabem o que aconteceu. A prova disso são pessoas na rua, hoje, pedindo a volta da ditadura”.
Fotos: Ton Nettos
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